#32 - sem unha e com dente
você pode andar de quatro sem se justificar
I.
Cortaram um pedaço de minha unha.
A do mindinho do pé direito.
Quase como uma poda: a turma da prefeitura vem como quem não quer nada e opera a tosquia.
Foi até útil: como não a lixava, volta e meia rasgava as meias brancas, e meias rasgadas tem utilidade limitada.
Mas cortaram minha unha, ficou só um cotoco perto da raiz. Não sei como nem vi quando. Me operaram um serviço.
Não pude agradecer, nem reclamar. A quem reclamaria?
II.
Desci pela escadaria do prédio, tinha pressa e não tinha saco pra esperar o elevador — que algum vizinho pau no cu segurava em sua folguidão de paulistano a quem tudo é devido — queria ganhar a rua de uma vez. Quatro paredes e nem um sol oprimem. Quando cheguei no saguão uma senhora fremia enquanto paramédicas da Samu a acoplavam na maca. Seu balbuciar era incompreensível; seu olhar, não.
Sinto muito, não posso fazer nada.
Atravessei a porta de ferro e tive ganas de acender um cigarro, mas lembrei que não tenho cigarros porque já não fumo.
Saltei por cima do rapaz que dorme todos os dias em frente ao nosso portão, deixei minha garrafa d’água para ele. Precisaria quando acordasse. Mesmo sem sol o tempo segue seco.
III.
E já que estava na rua, saí correndo. Não corria de nada nem de ninguém, apenas corria, sem dar valor ao ato visto que me doía a panturrilha. A cada pisada, lá dentro ela rangia silenciosa, me comunicando o recado que eu insistia em ignorar porque precisava seguir em frente. Pra onde também não sei, não faça perguntas tolas.
Um trote desprovido de sentido. Um cavalo que acelera o passo porque lhe esvoaçam as crinas e isso lhe agrada.
Tá aí! Eis o sentido.
Porém diferente do cavalo, eu galgava em desconforto, a fisgada da panturrilha se dissipava e subia para trás do joelho, o corpo elevando a tensão para onde quisesse.
E porque aquilo me incomodava, as sensações todas sublimadas por aquele crescente subindo a posterior da coxa, esqueci a poda da unha.
Até tropeçar de bico num basalto solto e xingar todas as gerações de czares russos e bandeirantes paulicéios.
IV.
Sentei-me ao meio fio e descalcei o tênis, no iludível ato de aliviar a dor massageando o membro. Tirei a meia e a unha do dedão apontava para a lua, descolada como os santa-ceciliers-higienopolers a passear seus cães a meu redor. Demorei um pouco a perceber o sumiço do mindinho.
Um sumiço completo e inequívoco: o dedo não estava mais ali. Talvez o tivessem transplantado diretamente para a Cicarelli, numa síndrome de Robin Hood às avessas; afinal, tirar dos pobres e dar aos ricos é a base de uma sociedade saudável, e o que me falta há de sobrar em outro alguém, por isso desejo e busco esse objeto que me escapa.
Recoloquei a meia, calcei os tênis e segui correndo. Mais ou menos, porque agora meu trote era de cavalo manco, cavalo insistente.
V.
Parei na praça e tomei uma água do bebedouro dos cachorros. Algumas pessoas pararam pra olhar o sujeito de quatro, se refestelando com a água. Aos poucos os cães se aproximaram, me cheiraram, a maioria com interesse. Trocamos focinhadas e averiguações de aromas anais.
Mas houve um, não posso esquecer, que me cheirou com desprezo, virou-me as costas e saiu de rabo em riste. Fui atrás e mijei em sua barriga. Meio incrédulo, demorou a entender; aproveitei e esvaziei a bexiga. Seu dono voou até nós aos brados de animal, animal. Lati contra seu avanço, mas ele estava irado e decidido. Desviei de seu coice, ele meio se desequilibrou e aproveitei o vacilo para aplicar-lhe uma dentada cheia na lateral da coxa. Puxei com força aquele naco de carne velha. Tinha gosto de aveia e merda.
Tentei vomitar, mas a carne cravou entredentes. Bati a boca, os dentes, contra o cimento batido, os dentes não desgrudavam nem da gengiva e nem da carne. Quanto mais tentava cuspir, mais engolia, a fetidão se alastrando em minha boca, fazendo espaço esôfago abaixo. Somente me acalmei quando o estômago começou a atuar.
Voltei pra casa e me sentei no vaso.
Antes de tirar os tênis, reconheci uma pinçada onde deveria estar meu mindinho, o movimento sutil de um girino em direção à metamorfose.


